Quem cuida dos cuidadores?

Escrito por
Alexandre Henrique Santos
Publicado em
1/6/2021

… se você e eu mirarmos quem se dedica a causas maiores que o próprio ego, o aparentemente raro mostra-se comum, e o dificílimo perde muito do seu poder. Essas mulheres e homens generosos nos dão mostras diárias de que um mundo melhor não só é possível; nós podemos fazê-lo real…

"Cada um dá o que tem no coração; cada um recebe com o coração que tem."
Oscar Wilde

A revelação de Carlos pegou a todos de surpresa. Tinha 20 anos, era um aluno brilhante e nós, seus colegas, lamentamos que deixasse o curso de economia na metade. Mas aconteceu. Subvertendo a crença de que pais cuidam de filhos, abandonou a sala de aula para pegar no batente e bancar o tratamento psiquiátrico da mãe. Passava as noites e finais de semana cuidando dela, numa prova de amor e da imprevisibilidade da vida.

Desde cedo histórias verídicas como essa, com gestos de lealdade, entrega e bondade chamaram minha atenção. Passaram-se anos, décadas, mais de meio século e tal admiração jamais diminuiu.

Não é questão de observar a realidade com filtro de candura. Tampouco se trata de desconhecer a quase-sem-fim maldade humana. E menos ainda de replicar a Síndrome de Pollyanna – tendência que leva certas pessoas a distorcer os fatos negativos a ponto de torná-los positivos. Trata-se de uma mera escolha. Assim como o falecido ator Paulo Gustavo via no humor um tipo de “resistência”; resistimos ao acreditar que a civilização pode superar a barbárie. Reunir e satisfazer as condições necessárias e suficientes para tanto não é algo rápido, simples ou fácil. Nem mesmo inevitável. Mas se você e eu mirarmos quem se dedica a causas maiores que o próprio ego, o aparentemente raro mostra-se comum, e o dificílimo perde muito do seu poder. Essas mulheres e homens generosos nos dão mostras diárias de que um mundo melhor não só é possível; nós podemos fazê-lo real.

A reflexão do parágrafo acima não é acidental. Steven Pinker, ex-diretor do Centro de Neurociência do MIT e professor do departamento de psicologia de Harvard, publicou em 2011 “Os anjos bons da nossa natureza” – um calhamaço com mais de mil páginas destinado a provar que a violência no mundo vem diminuindo. Claro que a impressão generalizada não é essa. “Se tem sangue, dá audiência!” – diz o cientista.

Entretanto, quando mergulhamos no passado com escafandro, com vontade abissal, desfazemos a ilusão de uma paz que nunca existiu. “Os séculos que despertam a nostalgia das pessoas eram tempos em que a mulher de um adúltero podia ter seu nariz amputado, uma criança de sete anos podia ser enforcada por furtar uma saia, a família de um prisioneiro podia ter de pagar por seus grilhões, uma bruxa podia ser serrada ao meio e um marinheiro, açoitado até ficar em carne viva. Os lugares-comuns morais de nossa época, de que a escravidão, a guerra e a tortura estão errados, seriam vistos como sentimentalismo adocicado e a noção de direitos humanos universais, como algo quase incoerente.”

Embora essa visão de Pinker possa merecer ressalvas, o que me interessa é destacar os “anjos bons da nossa natureza” que vivem aqui e agora entre nós.

Ninguém duvida que a pandemia do Covid-19 é um abundante mostruário de misérias. Elas englobam desvios de recursos para a saúde pública, preços superfaturados de medicações e material hospitalar e até a pura omissão de socorro. Essas ações dos “anjos maus” precisam ser combatidas e punidas com o rigor da lei. Porém, nada disso nos impede de ter outras visões. Também podemos ver uma farta e variada vitrine de virtudes. São legiões de profissionais, amadores e voluntários que se dedicam, dia a dia ou de modo circunstancial, a servir o próximo com total desinteresse. Esse é o foco do presente artigo, um convite para celebrarmos a existência da gente que cuida de gente.

Em cada quadrante do globo testemunhamos casos de heroísmo na luta da vida contra o vírus. Para onde se dirija o olhar é possível testemunhar demonstrações de doação. Tudo seria muitíssimo pior se não tivéssemos gente cuidando de gente: médicos, enfermeiros, paramédicos, auxiliares, motoristas de ambulância, bombeiros, coveiros, voluntários, vizinhos. Ao encontrar alguém envolvido nessa guerra sanitária, não fique calado. Expresse apreço, gratidão e ofereça apoio; pois essa gente suporta uma carga difícil de carregar. São esses exemplos que quero ressaltar.

Em setembro de 2016 a revista Nature divulgou um interessante estudo do biólogo José María Gómez e equipe sobre as raízes filogenéticas da violência letal humana. Segundo o cientista espanhol, professor da Universidade de Granada, na Idade Média as mortes causadas por atos violentos, como lutas, crimes e guerras, chegavam a 12% da população; na atualidade esse índice gira em torno de 2%. Foi uma importante confirmação da tese de Pinkler, e nos estimula a confiar que a civilização vem, aos trancos e barrancos, domesticando a própria selvageria. O passado era mais violento do que o presente. E isso não nega o tanto de barbárie que ainda existe no mundo.

O cuidado é oposto à violência; pressupõe respeito, suavidade, resiliência, aceitação. Sempre vale a pena. E a diferença entre aquele que é cuidado e o que cuida se chama ilusão. Na essência somos todos semelhantes; e essa semelhança faz o dar ser igual ao receber.

Meditando sobre fluxo dos vínculos afetivos, Otávio Paz (1914-1998, Prêmio Nobel de Literatura de 1990) poetizou o sentido de outridade – o outro tem algo de mim, e nunca serei eu mesmo sem levar dentro algo do outro.

Nós estamos inescapavelmente ligados a uma trama urdida de afetos: o cuidador ao cuidar do outro está cuidando de nós. Eu, ao ser cuidado pelo outro, de alguma maneira, sou cuidador de você. E você, ao cruzar com alguém, não deixe de cuidar dele.

Alexandre Henrique Santos

Meu nome é Alexandre e me dedico profissionalmente ao coaching de vida e aos temas comunicação e empatia. Minha missão é facilitar processos de desenvolvimento pessoal e interpessoal. Sou apaixonado pelo que faço; e após quase 4 décadas de prática aprendi a fazer bem.

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